Era
definitivo. Eu e Sara estávamos realmente namorando. Ela até me fez trocar meu
status no facebook. Era legal isso. Um desajustado social como eu em um
relacionamento sério. E ela tentava me ajustar aos poucos, me ajudava. Graças a
seu incentivo, eu comecei a realizar diversas atividades, digamos, externas.
Ela me levou para a oficina de teatro que participava. Falou que eu precisava
“perder minhas inibições” ou coisa parecida. Gostei da experiência e estou
exercitando minhas habilidades de atuação. Até comprei uns livros sobre o
assunto e passei a assistir filmes com outros olhos.
Ela me incentivou a ter uma vida
mais saudável também. Expliquei para ela que largar o Mc Donald's e as junk foods com entrega a domicílio era
muito difícil. Sabe como é, males da Cidade: o comodismo e a falta de
segurança. A comida vai até você e não você vai até a comida... Resultado: vou à
academia cinco vezes por semana.
Comecei um trabalho voluntário na
livraria onde ela trabalhava como contador de histórias para as crianças.
Descobri ali que eu levava jeito para a coisa. Pelo menos era o que os pais das
crianças falavam quando iam buscá-las e seus filhos simplesmente não queriam
deixar o lugar. Ou talvez eles fossem pais ruins, sei lá.
O lado bom desse trabalho é que pude
conhecer Daniel, filho de Sara, numa dessas “contações”. Nunca vi uma criança
tão inteligente na minha vida e isso me assustava. Eu fui uma criança
inteligente e perdi boa parte da minha infância por ficar meio que segregado
dos meninos “normais”, além de sofrer bullying. Ser burro às vezes tem suas
vantagens.
Quem não estava gostando nada dessa
minha nova vida era Monstro. Antes eu passava a maior parte do dia com ele, e
com essa mudança mesmo que leve na rotina, ele sentia saudades. O resultado
disso? O primeiro dia que eu cheguei a casa foi um inferno: ele revirou meu
cesto de roupas sujas e fez suas necessidades em cima da minha cama. Mesmo
sabendo que ele não podia responder, gritei num acesso de raiva:
― Pra que você
quer chamar mais atenção? Todo mundo já olha essa sua cara horrorosa! — Me senti o pior dono do mundo depois disso.
Algumas
semanas depois, num domingo, estava eu deitado no sofá com Monstro enquanto
assistíamos “Perfume de Mulher”, um dos nossos filmes preferidos. O interfone
tocou. Fiquei me perguntando quem seria, já que Sara havia me dito que levaria
Daniel para passear. Atendi e era realmente ela.
―
Sara? O que foi?
―
Espera eu subir, já te digo.
Rapidamente
ela chegou ao quinto andar. Me disse que seu pai estava passando mal e que
precisava de alguém com quem deixar o Daniel. Não me deu tempo de protestar nem
de desejar melhoras para o seu pai: deu um beijo de despedida no seu filho,
fechou a porta e foi embora.
Fiquei
olhando para aquela figura na minha frente. Cabelos ruivos e sardas herdadas da
mãe e com olhos castanhos profundos. Vestia uma camisa listrada azul e branca e
uma bermuda combinando. Nos pés, um crocs verde limão. Nas mãos uma
revista em quadrinhos da Turma da Mônica e uma mochila do Ben 10 nas costas.
Seus óculos azuis de aros grossos não negavam: Daniel era um protótipo de nerd
aos quatro anos. E eu o fitava, intrigado. Ele não se movia e correspondia o
meu olhar, como se me analisasse. Não sabia como fazer contato com ele, ali, na
entrada do meu apartamento. Minha única convivência com crianças era na
livraria, ou quando visita meus sobrinhos no Natal. Aquilo era muito mais
íntimo ― um menino de quatro anos invadindo meu espaço.
―
Oi ― eu disse, por fim, depois do que me pareceu uns cinco minutos de silêncio.
―
Ele não morde, né? ― disse ele, apontando para Monstro, que nesse momento
farejava alucinadamente a perna dele.
―
Não, não ― respondi, rindo. ― Bom, sinta-se em casa. Como você pode ver, não
tenho muitas coisas pra crianças e...
―
Uau, olha só isso!
Ele
olhava encantado para minha estante. Seus olhos pareciam brilhar ao admirar
tudo aquilo. ― Quantos livros você tem aqui? ― ele perguntou com uma nítida
curiosidade em sua voz. Fiquei feliz que uma criança realmente se interessasse
por isso.
―
Deve ter uns trezentos. Você quer que eu coloque sua mochila em algum lugar?
Sem
falar nada e sem tirar os olhos da estante, tirou a mochila das costas e me
entregou. Coloquei-a em cima da minha cama. Voltei e ele ainda estava lá.
Sentei no sofá novamente. Irritado com a falta de atenção, Monstro começou a
latir para Daniel. Foi aí que ele percebeu. Se virou, olhou para mim e sentou
na outra ponta do sofá. Monstro subiu e se acomodou entre nós.
O
que eu faria agora?
―
Hmmm, você quer comer alguma coisa? Tenho biscoito no armário... Refrigerante,
talvez?
―
Minha mãe não gosta que eu coma porcarias...
―
É, eu sei. Ela também vive brigando comigo por causa disso... ― respondi
sorrindo.
―
Você é o novo namorado da minha mãe, né? Ela gosta muito de você.
Aquilo
me pegou de surpresa. Não sabia o que dizer.
Preferi apenas olhar para ele e sorrir. Ele sorriu também.
―
Ei, você quer ir ao cinema?
O
rosto dele expressava dúvida. Ele me olhava como se estivesse falando grego.
Foi aí que eu entendi.
―
Espera aí, você nunca foi ao cinema?
Ele
continuou em silêncio. Mas já não precisava falar mais nada.
Fui
ao meu quarto e escolhi uma camisa mais arrumada — tinha que parecer ao menos
um adulto sensato para poder andar com uma criança a tiracolo —, fui até as
janelas e tranquei-as, não sem antes contemplar rapidamente o céu. Humanos
tolos estes da Cidade: chamam isso de céu azul? Se tivessem vindo de onde eu
vim...
Ao
sair, Monstro latia, irritado, por ficar para trás de novo. Foi difícil, mas
conseguimos chegar ao elevador. Este também demorou a chegar. Ficou algum tempo
parado no segundo andar. Pelo que eu ouvi, tinha alguém se mudando pro 201. Disseram-me
que era um padre. Mas que diferença isso ia fazer na minha vida de ateu?
O
elevador chegou, a porta se abriu, entramos, apertei o botão que nos levaria ao
térreo, e começamos nosso caminho edifício abaixo, em silêncio. Eu o olhava,
sem dizer uma palavra. Um sopro de nostalgia entrou pelas minhas narinas e
anuviou minha mente. Vi a mim mesmo, aos quatro anos, lendo uma revistinha da
Turma da Mônica empoleirado numa cerca. Daniel poderia ser facilmente uma
reencarnação minha, um novo eu, meu filho. Sacudi minha cabeça, afastando esse
pensamento bizarro, e reparei que já havíamos chegado ao fim de nossa viagem
vertical.
A
vida na Cidade se resume basicamente a luta por espaço, terreno, propriedade.
Todos querem estar nas áreas centrais. Quando algum apartamento ou sala
comercial fica vaga, não precisa-se de muito tempo para preencher essa
vacância. Eu dei sorte de conseguir um lugar nesse edifício, e fico muito feliz
com isso. Afinal, moro perto de tudo. Andamos apenas dez minutos e dobramos
algumas esquinas para chegarmos em frente ao antigo cinema do bairro. O
letreiro corroído pelo tempo e com letras faltando não era lá um grande convite
a adentrar aquele lugar. Mesmo assim, segurei a mão de Daniel, atravessamos a
rua e entramos naquele lugar.
Uma
vez lá dentro, era visível o esforço dos funcionários para tentar fazer o
cinema parecer em melhor estado do que ele estava: a limpeza era impecável,
apesar do teto descascado e o cheiro de mofo misturado com um aromatizador de
ambientes competente. Daniel escaneava cada milímetro do espaço com o olhar. Ele
parecia encantado. Levei-o até a pequena bomboniere do cinema, com sua
pipoqueira gigante que ficava num canto da bancada e que com certeza se
destacava do resto do balcão. Pedi um pacote grande para nós dois. Falei com
ele que, por hoje, ele poderia abrir uma exceção — que a mãe ele não estava
vendo e que aquele seria nosso segredo — e que ele poderia pedir o que quisesse
comer. Um sorriso largo se abriu em seu rosto e Daniel, tímido, pediu um pote
de Mini Bis e uma Coca-cola de tamanho médio.
Escolhi
para nós uma animação da Pixar que estava em cartaz (“uma criança do século XXI
que nunca assistiu uma animação da Pixar no cinema infelizmente não é uma
criança completa”, pensei comigo mesmo), comprei os ingressos e entramos. Ao
chegar na sala escura, Daniel se assustou e grudou em mim. Não pude evitar um sorriso. Escolhi lugares na parte superior da sala, de modo que nenhum "cabeção" pudesse atrapalhar nossa vista.
Observava Daniel com uma sensação indescritível. Talvez fosse essa a graça e o sabor de se sentir responsável por alguém: poder lhe ajudar a fazer as mais singelas descobertas. Como alguém como eu poderia ser professor de vida para uma criança de quatro anos? Ao ver seus olhos brilharem assim que a tela branca começou a projetar imagens em movimento, ao ver um sorriso escancarado em seu rosto por uma hora e meia, ao vê-lo rir, conversar com os personagens, se impressionar, lutar, torcer por eles. Aquela emoção nítida, ingênua e verdadeira.
No fim, me dei conta que é assim que devemos encarar a vida: com o coração de um adulto, já enrijecido pelo tempo, mas com o olhar de uma criança, ávida por descobertas.
Exausto pela nova experiência, Daniel adormecera. E eu, que nunca tive traquejo social, saí do cinema carregando uma criança no colo, dormindo em meus ombros.