31 de julho de 2013

[403] Episódio 10: A Viagem



O dia amanhecera cinzento como de costume.

Era ainda muito cedo quando Mirella fechou a porta de seu apartamento e desceu as escadas do prédio carregando sua mala e toda sua expectativa, indo em direção a um passado indecifrado.

Precisaria pegar o metrô até a Rodoviária. Faria sua viagem de ônibus, já que perdera seu carro por conta das dívidas que fizera em seu último relacionamento. Luis era um homem muito persuasivo.

Naquela hora da manhã, as estações mais pareciam formigueiros. As pessoas se acotovelavam e empurravam em busca de espaço. Acostumara-se a este inferno matinal desde que passara a fazer seu percurso para o trabalho usando o metrô.

 A tempo, Mirella chegou à rodoviária.

O ônibus seguia em velocidade permanente.  Mirella observava pela janela o caminho que, feito tapete vermelho em grandes estreias, se desenrolava diante de seus olhos. A faixa amarela que dividia a estrada avançava a cada quilometragem hipnotizando-a. O pensamento não acompanhava aquela movimentação e era mais rápido que a sua vontade. Impossível fazer aquela viagem sem reviver lembranças do passado, reminiscências que ela sabia o quanto feriam-na por dentro.

Lágrimas irreprimíveis escorriam pela face de Mirella. Estava sozinha naquela empreitada.

Queria paralisar seus pensamentos. 

Nessas horas, valeriam aqueles cursos de meditação que tanto procrastinara  Lembrou-se então do Frei, um rapaz tão jovem e tão cheio de sabedoria, que morava em seu prédio, e daquele encontro casual onde velas e fósforos foram motivo para longos papos.  Ele lhe falara de sentimentos e experiências que tocaram profundamente suas mágoas. O que ficou guardado no inconsciente de Mirella, agora, diante daquela viagem com promessas catárticas, parecia querer revelar-se.

Precisava relaxar.

Era um longo percurso e ainda tinha muito chão para rodar.

Conseguiu ler um pouco durante o dia. O ônibus faria uma única parada para o almoço e depois seguiria viagem noite adentro. Seria uma noite interminável para ela!

Acabou por adormecer.

Acordou várias vezes durante a noite por causa dos pesadelos. A última vez que tentou dormir, o céu aclareava em cores douradas e alaranjadas no horizonte.

O ônibus adentrou a cidadezinha logo ao amanhecer.

As ruas secas e empoeiradas já não existiam mais. Para surpresa de Mirella, havia no lugar da enlameada rua principal, paralelepípedos, calçadas e uma pequena alameda com arvorezinhas recheadas de flores amarelas e postes de luz de cimento, e não mais os de madeira podre que ameaçavam cair a qualquer momento. Definitivamente aquela não era a cidade que Mirella cresceu e para qual deu as costas. É bem verdade que alguns comércios ainda estavam intactos. Mas percebia-se o progresso alcançado e bem chegado àquela população. 

Houve um pequeno sopro de contentamento. 

Quem sabe até de esperança.

O ar estava diferente. Mirella estava diferente. Tudo estava diferente

Ninguém a esperava na rodoviária. 

Preferiu não deixar marcada data de chegada.

Conseguiu um táxi para chegar ao sítio onde seus pais moravam. Um lugarzinho simples e bucólico, afastado do centro, onde criavam galinhas, patos e cultivavam uma pequena horta no fundo do quintal. Desceu do táxi e não precisou de muito tempo para que as lembranças da infância renascessem em sua memória; o cheiro de cocô dos patos e das galinhas era inconfundível e, para ela, insuportável.

Sentiu ânsia de vômito.

Passado o primeiro impacto, foi logo entrando pela porta da frente que vivia aberta. Percebeu que, apesar do progresso ocorrido na cidade, o mesmo não acontecera ali. Tudo estava exatamente igual desde a última vez que olhou para aquelas paredes. Uma casa de tijolos aparentes, caiada e, apesar de pobre, extremamente bem cuidada. O cheirinho do café feito no coador de pano parecia diferenciado. Foi absorvida e abduzida pelo mesmo. Deixou a mala na sala e foi direto para a cozinha, onde avistou uma senhorinha mediana muito franzina, com um coque preso no alto da cabeça, uma das mãos segurando uma chaleira de alumínio que jorrava água fervente no coador de café apoiado sobre a pia. A outra mão segurava a cintura, formando uma asa em conformidade com o bule.

Mirella ficou por alguns segundos observando a cena, só despertando do transe quando ouviu um grito. Sua mãe, ao se virar, assustou-se com a presença dela e acabou por deixar cair o bule no chão, derramando o café.

Os olhares se cruzaram por segundos e Dona Miriane, sem saber ao certo como reagir, enxugou algumas gotas de lágrimas que escaparam de seus olhos limpando-os com as costas das mãos, tentando disfarçar a emoção. Baixando a cabeça mais por humildade que vergonha, logo pôs-se a pegar um pano para limpar o descuido. Mirella segurou a mão de sua mãe e, sem precisar dizer qualquer palavra, abraçou-a carinhosamente. Não imaginava o quanto ela havia envelhecido e o quanto aquela vida a maltratara. Apiedou-se e, mais do que esquecer um passado de rancores e palavras duras, brotou em seu coração um amor incondicional que, ali mesmo, naquela cidade, um dia, matara por questões mesquinhas e infantis.

Há muitos silêncios naquelas vidas...













"O tempo não só cura, mas também reconcilia.”(Mih Baldi)

25 de julho de 2013

[505] Episódio 7: Com quem fica o cachorro? (parte 2)

(Leia a parte 1 deste episódio aqui)

A felicidade de Monstro irradiava. Ele estava feliz, nós estávamos felizes. Os dias se passaram e Monstro ganhou todo nosso carinho. Estávamos adaptando nosso cotidiano ao nosso novo morador aos poucos: ele ganhou seu cantinho na casa; tinha sua caminha, ração e água. Fizemos uma escala para levá-lo para passear. Marina até se esqueceu de baladas e homens por um tempo. Mesmo em segredo, fiquei satisfeito.

Os problemas começaram cerca de um mês depois. Monstro fez xixi na porta de uma vizinha do andar debaixo. Dona Mirella não reagiu muito bem a isso, mesmo eu tendo voltado para limpar alguns instantes depois. Fiquei com medo de ouvir umas poucas e boas do síndico, mas isso não aconteceu.

Eu, enterrado num mar de provas da faculdade, ficava trancado em casa, estudando. Quase não via Marina, como era de costume, e Monstro era minha única companhia. Me afeiçoei demais àquela criaturinha feia. O chamamos de Monstro por ele ter uma deformidade no rosto. Acabamos por descobrir com a idealizadora da feira que seu rosto era daquele jeito devido a maus tratos e agressões de seu último dono. Aquilo me fez pensar: uma pessoa que faz isso com um pobre animal indefeso; o quanto será que ela é feia por dentro?

Até que aconteceu.

Um dia Marina chegou a casa, fazendo muito barulho. Monstro começou a latir. Eu acordei assustado. Encontrei-a ainda perto da porta, apoiada na parede. Estava visivelmente bêbada.

— Sai daqui! — ela gritava pra mim.

Tentei ajudá-la, mas ela me empurrava e me socava com o pouco de coordenação que o álcool não inebriou.

— Sai daqui! Você é um idiota! Eu te odeio!

— Marina, para com isso! O que houve? O que eu te fiz?

— Você não fez nada. Você nunca faz nada. Essa é a merda do problema!

Não tinha entendido muito bem, até que ela tentou me beijar. Afastei-a, enrubesci e vi lágrimas se formarem em seus olhos. Seu olhar fixou-se no meu por alguns instantes, até ela sair correndo, desajeitada pela casa, para vomitar no banheiro.

Me sentia o pior dos seres humanos por ter provocado o estado deplorável no qual encontrava seu coração. Me sentia insensível por nunca ter percebido. Teria mudado alguma coisa se eu tivesse percebido? Poderia eu corresponder se soubesse o que ela estava sentindo? Por que eu era tão frio?

Cuidei dela. Ajudei-a a entrar num banho gelado, lhe ofereci um café bem quente. Ela, sem coragem de proferir uma palavra sequer. Eu nem ao menos conseguia encará-la nos olhos. Acordei no dia seguinte sozinho na casa.

Ela havia ido embora, sem deixar rastros. Sem falar nada. Sem deixar ao menos um recado. Monstro também não estava lá. Ela foi embora e levou o cachorro. E eu estava sozinho naquela Cidade, pela primeira vez. O apartamento parecia maior e qualquer passo que eu dava ecoava pelas paredes. Não é fácil se acostumar com a solidão. Apesar de sempre ser solitário, tinha em minha mente a ideia de ter alguém por perto. Agora era só eu por mim mesmo.

Uma semana se passou. No meio da madrugada, ouço minha campainha tocar. Algo arranha minha porta. Quando abro, vejo Monstro olhando para mim. Pendurado em sua coleira, as chaves reserva do apartamento. Ao seu lado, no capacho, um envelope.

Abri. Uma simples mensagem numa bela caligrafia dizia:

"Não há ninguém melhor para ele do que você. Ele sente saudades."

Olhei ao redor mas já não havia mais ninguém.

(Anos depois descobri o amor. Apesar de meu medo, apesar de só ter conhecimento da parte teórica através dos livros e filmes perdidos neste apartamento, me joguei de cabeça, arrisquei, e fui correspondido. Lutei por Sara e afeiçoei-me a Daniel. Mas o destino me reserva grandes surpresas.)

22 de julho de 2013

[403] Episódio 9: A Filha Pródiga

"Ando cansada de muita coisa."

Pensava Mirella ao sentar-se em seu sofá, na sala, e deixar cair no chão uma carta. Acabara de desligar a TV onde os jornais anunciavam as confusões e vandalismos que vinham ocorrendo na Cidade.

Continuou em suas divagações.

"Quando me vi aqui, nesta Cidade, minha intenção sempre foi a de recomeçar.  Esquecer e recomeçar. Acreditava que depois de tantas andanças poderia esquecer meu passado e recuperar minha lucidez. Durante muito tempo vivi uma vida desgovernada. (Essa palavra vem bem a calhar neste momento). De que me adiantou essa constante preocupação em mudar de endereço se o passado, feito um parasita, me acompanha onde quer que esteja?

"Ando cansada do meu emprego, dos meus pensamentos, de mim mesma. Dessa forma de me governar; preciso protestar e gritar. Quem sabe fazer um quebra-quebra geral dos meus conceitos, regras, sei lá. 

"Que vida é essa que levo?

"Nada de amigos, de vida social. Vivo na tríade: Trabalho-casa-trabalho. Sempre imaginei que depois dos 40 anos estaria com minha vida estabilizada, um companheiro ao meu lado e usufruindo das facilidades que este tipo de vida proporcionaria. Quiçá um cartão de crédito pago!  E o que tenho? Dívidas, solidão, insônia e mais inquietações.

"Quem pode ser feliz assim? Pelo menos consegui me livrar do vício do cigarro.

"Caminhos bifurcados, escolhas erradas.

"Ando muito cansada de tudo."

Levantou-se e recuperou a carta que estava no chão. Fitou-a como se a lesse maquinalmente. 

Em plena era da informatização, Mirella recebia uma carta escrita à mão. Logo que a viu no escaninho das correspondências pode averiguar que se tratava de notícias de seu passado. 

Andando pela casa, sem rumo certo, releu a sentença: “Mirella, seu pai está morrendo. Em seus delírios chama por seu nome. Está confuso. Consegui seu endereço com o Bentinho. Ele veio por aqui visitando a família. Por favor, tente esquecer o que passou e venha ver seu pai. Não sei quanto tempo ainda ele fica vivo. Sua mãe.”

Ao acabar de ler aquelas palavras escritas em um papel tão chinfrim e com uma letra trêmula de quem se aventurava a escrevê-las, percebeu que estava no banheiro, em frente ao espelho. Apoiou as mãos na pia e fixou o olhar apertando os olhos como se quisesse se reconhecer.

O tempo, implacável tempo!

Onde estavam aquelas sardas que a deixavam com cara de menina apimentada? E os seios minúsculos que teimavam em brotar por baixo da camiseta? Onde achar o brilho daqueles olhos cheios de inocência e sorrisos cheios de graça e alegria?

Ficaram nas recordações de uma infância tranquila que não premeditava uma adolescência conturbada.

Sempre fora uma criança agitada, travessa, esperta e cheia de questionamentos. Seus pais, pessoas muito simples e de pouco estudo viviam sem respostas para suas perguntas, o que aumentava sua angústia em querer descobrir o mundo. Essa ânsia de saber crescia paralelamente a sua beleza física. Na adolescência, quando seu raciocínio era mais lúcido, se assim se pode afirmar, tudo piorou. Percebia que aquelas pessoas de sua cidade não lhe entendiam e não acompanhavam seus pensamentos. Não como ela imaginava. Vivia às turras com seus pais. Era filha única, o que piorava a situação. Tivera um irmão mais velho que morreu ainda jovem. Mirella era muito criança quando isso aconteceu e por isso não se lembrava do irmão, a não ser pelas poucas fotografias que existiam na casa. A morte dele estava envolta em mistérios que ela nunca conseguiu descobrir. Parecia que havia um pacto de silêncio entre seus pais e aquela cidade. Eles decidiram enterrar o assunto junto ao túmulo do filho de forma que nunca mais se ouviu falar nada. Mas Mirella, em sonhos, muitas vezes via seu irmão. Terrível como só ela era, exagerava, e dizia vê-lo pela casa andando feito zumbi. Quando comentava tal feito com os pais, os mesmos ficavam apavorados e queriam levá-la para a igreja para que o padre a exorcizasse. Mirella fugia e se escondia até que passasse a ira deles. Nestas horas, ela contava sempre com Bentinho, seu melhor amigo, que lhe dava cobertura. 

Passou então a esconder muitas coisas. Cresceu rodeada de gente preconceituosa e ignorante.

Mirella passou a viver em mundo paralelo.

Ao atingir a maioridade, compreendeu que não pertencia àquele lugar. Foi quando houve o escândalo que a fez deixar a cidade e cair no mundo.

Maldita carta!

Por que voltar? Foi renegada por seus pais! Ela fazia questão de enterrá-los assim como os mesmos fizeram com a morte de seu irmão! Sequer lembrava mais deles. Na verdade, esforçava-se para esquecê-los. Se não fossem pelos sonhos - ou seriam pesadelos?! E agora esta carta que a chamava para uma volta ao passado...

Definitivamente: a vida é cíclica!

Muitas vezes se faz necessário dar um passo para trás para que se possa seguir em frente! Quem sabe indo de encontro ao seu passado ela poderá encontrar respostas para seu futuro?

Quem sabe?

De alguma forma será bom sair um pouco da balbúrdia em que sua vida e a vida da cidade se encontram nesse momento.

Encorajou-se e foi tirar a mala que estava na parte superior do armário.

Espanou a poeira e começou a se preparar para a viagem.

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A Parábola do Filho Pródigo  
"Disse Jesus: Um homem tinha dois filhos. O mais moço disse a seu pai: Meu pai, dá-me a parte do patrimônio que me toca. O pai então repartiu entre eles os haveres. Poucos dias depois ajuntando tudo o que lhe pertencia, partiu o filho mais moço para um país muito distante, e lá dissipou sua herança vivendo dissolutamente. Depois de ter esbanjado tudo, sobreveio àquela região uma grande fome: e ele começou a passar penúria. Foi pôr-se a serviço de um dos senhores daquela região, que o mandou para os seus campos guardar porcos. Desejava ele fartar-se das vagens que os porcos comiam, mas ninguém lhas dava. Entrando então em si e refletiu: “Quantos empregados há na casa de meu pai, que têm pão em abundância, e eu, aqui, a morrer de fome! Levantar-me-ei e irei a meu pai, e dir-lhe-ei: Meu pai, pequei contra o céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como a um dos teus empregados”. Levantou-se, pois, e foi ter com seu pai. Estava ainda longe, quando seu pai o viu, e, movido pela misericórdia, correu-lhe ao encontro, lançou-se-lhe ao pescoço e o beijou. O filho lhe disse então: “Meu pai, pequei contra o céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho”. Mas o pai disse aos servos: “Trazei-me depressa a melhor (primeira) veste e vesti-lha, e ponde-lhe um anel no dedo e calçado nos pés. Trazei também o bezerro cevado e matai-o; comamos e festejemos. Este meu filho estava morto, e reviveu; tinha-se perdido e foi achado”. E começaram a festa. O filho mais velho estava no campo. Ao voltar e aproximar-se da casa, ouviu a música e as danças. Chamou um servo e perguntou-lhe o que havia. Ele lhe explicou: Voltou teu irmão. E teu pai mandou matar um novilho gordo, porque o reencontrou são e salvo. Encolerizou-se ele e não queria entrar; mas seu pai saiu e insistiu com ele. Ele, então, respondeu ao pai: há tantos anos que te sirvo, sem jamais transgredir ordem alguma tua, e nunca me deste um cabrito, para festejar com os meus amigos. E agora, que voltou este teu filho, que gastou os teus bens com as meretrizes, logo lhe mandas-te matar um novilho gordo! Explicou-lhe o pai: Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu; convinha, porém, fazermos festa, pois que este teu irmão estava morto e reviveu, tinha-se perdido e foi achado”. Lucas, 15:11 a 32

4 de julho de 2013

[407] Episódio 6: Édipo-Rei

Uma moça chamada Clarice um dia encontrou um rapaz de lindos olhos azuis e farda militar. Eu não sei vocês, mas eu sempre achei farda um negócio muito bonito. Imagino pessoas disciplinadas e inteligentes, não de uma inteligência matemática ou de saber de cor todas as capitais da América Latina, mas uma inteligência estratégica, de jogo de xadrez, de saber o próximo passo, o próximo pensamento. Eu via homens de farda e sentia que eles me sabiam antes mesmo de eu abrir a minha boca pra falar. Clarice era como eu. E Clarice deu pro cara.
Casaram por causa de uma gravidez conturbada. O cara fugiu logo para outro batalhão quando soube da criança, mas o pai de Clarice era um senhor muito, muito rico, caçou o infeliz até os infernos. Achou. Casaram. Nasceu Danilo.
Cada dia que passava, eu sabia que Danilo era eu e eu era Danilo. Nossos pais filhos da puta, nossas tristes histórias, nossos choros de chão de banheiro, tudo era tão igual e me assustava tanto e doía tanto. Doía porque eu via um espelho nos olhos de Danilo e cada lágrima que rolava na minha cara tinha uma irmã gêmea escorrendo na cara de Danilo. A gente tinha uma merda de dor e uma merda de vida muito iguais. A diferença é que Danilo, como eu disse, era muito rico.
O pai de Danilo, claro, rejeitou aquela barriga desde o primeiro dia. Clarice teve uma vida bem ruim, um casamento ruim. O marido bebia e a criança chorava. A criança chorava e o marido batia. Clarice chorava. Chorou até o dia em que usou a arma do marido para estourar os miolos.
Danilo tem um ódio mortal da polícia.

Claro que eu não sabia disso, enquanto esperava Danilo na porta do Edifício Cinza. Sentada na calçada, pensando ainda na garotinha que juntou as minhas guimbas no chão, avistei o meu menino chegando. Mas tinha um ar estranho. E ia ficando cada vez mais estranho, a medida que se aproximava. Estava quase duas horas atrasado, tudo bem, quer dizer, tudo bem o cacete, mas vá lá, não é motivo pra chegar branco daquele jeito. Na minha frente, Danilo explicou.
E confesso que até agora não consegui acreditar.
Meu menino matou um homem.

Talvez não tenha mencionado, mas Danilo não mora perto. Vi na TV da padaria que a cidade andava meio que num clima de guerra, mas pra mim tanto faz, eu vivia em clima de guerra e nem por isso eu passava nas TVs das padarias. Eu não tinha um celular ou um telefone ou qualquer outra forma de contato, então era eu que ligava pra Danilo com meus cartões de 20 unidades. Geralmente, ele vinha às quintas-feiras. Era quinta-feira. Ele veio. Ensanguentado dos pés à cabeça.

Era a guerra, então. Tinha chegado, mas eu não sabia nem que lado eu ficava. Só sabia que mataria qualquer um que machucasse Danilo. Mas ele se adiantou.

Estou cansada agora e a luz aqui da cela é muito fraca, mas tudo o que eu posso adiantar é que, pelo que eu entendi, por causa de 0,20 centavos, Danilo matou um homem.

Danilo vingou Clarice.