6 de agosto de 2013

[304] episódio piloto


Ainda me lembro de quando eu a conheci. Mesmo no meio daquela fumaça de cigarro que cobria toda a kitchenette do Sujeira, assim que ela chegou perto de mim, sentado no sofá floral da sala conjugada a cozinha, o cheiro forte e doce de chiclete de melancia incomodou meu nariz. Ela era a coisa mais linda que já tinha visto.

Vestida de branco com um raio no rosto, referência a David Bowie, segurava uma garrafa de cerveja e se sentou ao meu lado, sem se importar com a garota fantasiada de Princesa Leia que já estava comigo. A conversa começou a fluir entre nós dois (eu e ela), deixando a minha-primeira-mina-da-festa com a cara vermelha de raiva. Naquela mesma hora, soube que ela seria minha. Imponente, descarada, safada. Aquela puta!

Conversamos sobre bebidas, festas, pessoas, Ramones, tatuagens, frescobol, comidas, cafés, música. Trocamos telefones. Discutimos Foucault. Transamos. Duas Vezes. Nesta mesma noite. Estava no apartamento dela quando acordei. Mas ela não estava mais na cama. Nem em nenhum lugar entre aquelas paredes. Havia deixado somente um bilhete dizendo que deixou uma garrafa com café na pia. Vesti novamente minha roupa de Doctor Who, desta vez sem o sobretudo (este foi o principal motivo da minha escolha de fantasia pra festa: será que posso andar com ela à luz do dia?) e voltei pra minha casa, com uma leve, bem leve dor de cabeça.

Desenho. Adoro desenhar. Também sou (ou tento ser) escritor e tento há vários anos terminar os livros que comecei. Só consigo terminar moleskines que encho de rabiscos, desenhos, frases que vejo por aí... Estava escrevendo numa cafeteria (o lugar recomendado para escrever de 9 entre 10 escritores) quando ela me ligou pela primeira vez. Já haviam se passado dois meses, mas consegui reconhecer a voz dela. Marcamos um encontro ali mesmo e, dez minutos depois, ela estava li, na minha frente,chorando enquanto dizia que estava grávida. De mim.


Sou de família extremamente católica, apesar de eu participar somente das missas de Páscoa e Natal. Quando ficaram sabendo que eu a engravidei, meus pais disseram que eu só iria para o céu se assumisse o moleque. Duas semanas depois já estávamos fazendo exames juntos, como um casal empolgado com o primeiro filho, mas sem a parte da empolgação. Logo mais, juntos num apartamento grande e confortável. Um quarto pra nós dois. Um quarto pra criança. Um quarto de visitas, que ela disse ser necessário, já que a família dela morava no interior.

Todo casal começa a morar feliz e, à medida que o tempo passa, os defeitos e discussões sobre eles vão aparecendo. Parece que começamos nosso relacionamento pelo final. Não parecia haver qualidades em nenhum de nós dois. Brigávamos todos os dias. E não, não fazíamos as pazes na cama. Às vezes, somente com um selinho de manhã. Só por uma vez dei uma rosa a ela, mas não houve reconhecimento, então não repeti o ato.

Tudo piorou quando ela perdeu a criança. Foi tudo muito mal explicado, mas ela disse que caiu da escada quando tirava a poeira de cima do armário da área de serviço. Por dois dias nem conversamos. Depois, tivemos a pior de todas as brigas. E mais uma vez acordei sem ela. Novamente, o bilhete estava lá.

Deixei bife e arroz no microondas. Joguei na privada aquela rosa. E a aliança eu deixei pra você pagar as contas.

Aquela puta! Me deixou sozinho ali, com o Sabujo, o cachorro dela. Não era possível. Não podia ser verdade! Por dois dias eu esperei ela voltar. Só no terceiro dia, o dia da Ressurreição, me toquei. Fui à Missa de Páscoa. No outro dia, vendi as alianças. Paguei as contas. Sentado numa desconfortável cadeira de madeira, na casa dos meus pais, visualizei a grande oportunidade da minha vida. Um curso de ilustração na Inglaterra. 

Foi esse curso que deu o nome de Londres ao apartamento onde estou morando hoje. Ainda no aeroporto, depois da grande chance ter ido pros ares, comprei um jornal. E ali estava, nos Classificados, um apartamento vago, perfeito pra um cara que precisa aprender a lidar com a solidão e um cachorro abandonado pela dona, num edifício cinza no centro da cidade.

FOTOS: (1) (2)

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