21 de novembro de 2013

[205] Episódio 1: A verdade vos libertará

http://www.bbel.com.br/upload_2009/conteudo/locador_inquilino2.jpg
Gosto de café forte. A receita é muito simples: duas colheres de sopa bem cheias de pó, para uma xícara de água, e duas colheres de açúcar. Eu sempre faço a quantidade exata para ser consumida na hora, não gosto do sabor oxidado que o café ganha ao descansar na garrafa, nem do sabor queimado das cafeteiras.

Fervo a água – já misturada com açúcar – e passo o café diretamente na xícara. Escolho o melhor produto, tem um monte de marca barata por aí em que o café é moído com milho e gravetos. O sabor é horrível. E o café não é barato porque a empresa é boazinha, o produto foi muito mal produzido e o povo, em sua maioria com renda baixa, vai consumir, evidentemente, o mais barato. Essas firmas devem estar ganhando rios de dinheiro.

Percebem como há sempre um interesse por trás de tudo? Sempre há.

Acabei de pintar a sala, era o último cômodo a ser reparado. Ainda tenho muitas coisas fora do lugar, apesar de não ter tantos móveis assim. Há várias caixas com livros e revistas espalhadas, aprecio bastante a leitura, e gosto de colecionar os volumes. O apartamento é muito bom, é amplo, arejado, exatamente como a moça da imobiliária disse há uns cinco dias.

– O senhor vai gostar, o apartamento é amplo, arejado, realmente muito bom... O senhor tem mulher, filhos? – perguntou ao me oferecer as chaves.

– E o que você tem a ver com isso? – respondi de pronto ao pegá-las.

– Err... me perdoe... – desculpou-se encabulada.

Levantei-me e saí da loja, mas ao cruzar a soleira da porta, ouvi som de risinhos lá dentro e voltei.

– Qual é o motivo do riso?

– Desculpe... não estamos rindo do senhor... – respondeu uma funcionária no fundo da sala. – Foi um mal entendido, só isso. - concluiu. Seu olhar era irônico, suas desculpas não eram sinceras.

– Eu vou dizer o que é mal entendido. - exclamei com o dedo em riste. – Mal entendido... é vocês quererem saber da minha vida e debocharem de mim. Eu não tenho que dar satisfações sobre nada pra ninguém, muito menos pra vocês! Eu posso processá-las e, eu tenho certeza, que o seu patrão vai colocá-las na rua antes que o processo termine... – concluí e tornei a sair. Dessa vez não houve risinhos.

Hoje em dia as pessoas se interessam cada vez mais pela vida alheia. Tem gente que chega ao cúmulo de vasculhar o lixo dos vizinhos... Isso é realmente o cúmulo! Idiotas! Quem elas pensam que são para ficar rindo de mim daquele jeito? Nunca gostei de deboche. Talvez seja por causa disso que eu nunca tive muitos amigos, nem muitas namoradas. Para falar a verdade, eu acho que eu não tenho amigo algum. Nunca consegui trabalhar em firmas, e acabei me tornando design gráfico. Trabalho tranquilamente na solidão de meu quarto e c’est fini.

Aos treze eu tive uma crise nervosa na escola, cheguei a ser hospitalizado por algumas horas. Os caras mais populares da turma estavam me sacaneando – o que chamam hoje por bullying – e eu não sabia como reagir. Joguei minha mesa pro alto e fiz menção de ir na direção deles para agredi-los, mas desmaiei antes de alcançá-los. Continuei a ser a chacota da escola, o cara estranho que não parecia achar lugar no corpo em que Deus lhe encarnou, o sujeito retraído sem poder de reação. Mas o clonazepam que passei a fazer uso depois desse episódio e as consultas com o psicólogo, me tornaram insensível a esse tipo de coisa, e a mais um monte de coisa por aí.

Eu tive diversas crises nervosas depois disso, a última foi há cerca de duas semanas. Tempos atrás eu avistei minha mãe conversando com uma ex-empregada em um dos supermercados da cidade. Elas não me viram. A expressão das duas não era das melhores, minha mãe estava apreensiva, parecia não querer ser vista com a... Luzia... acho que era Luzia o nome dela. Eu a vi em outras ocasiões perto do meu prédio, acredito que morava ali próximo. Sempre foi muito cordial comigo.

Mas naquela quinta-feira, eu voltava do psicólogo – devia ser por volta das 17 horas – e entrava pela porta de serviço, que dá direto para a lavanderia do apartamento. Eu ia por a mão na maçaneta, mas ouvi uma discussão e parei...

– Lúcia, eu não vou te dar mais dinheiro, chega!

– Você é quem sabe. Eu sei tudo sobre o garoto, será muito simples abrir seus olhos...

– Você não se atreva... - ameaçou minha mãe, com um tom de voz cada vez mais inflamado.

– E porque não? É um direito dele! - argumentou a ex-empregada. Falava ironicamente, muito diferente do que eu a conhecia.

– Direito dele, ou não, isso é um assunto que cabe somente à nossa família! – retrucou, abaixando a voz repentinamente, chegando quase a sussurrar.

– Família... você é patética. Uma família montada em cima de uma mentira!

– Cale a boca! Era para você ter sumido, foi para isso que te pagamos!

– Ora, eu me arrependi...

– Depois de 23 anos? A única coisa que você quer é dinheiro, sempre foi por dinheiro...

– E quem não quer dinheiro?

– Nos deixe em paz... – disse minha mãe, sua voz se distanciou um pouco, depois tornou a se aproximar. – Tome isso. Acha que é suficiente desta vez para sumir para sempre de nossas vidas?

– Talvez seja, é muito dinheiro... mas sempre será pouco para pagar a ausência de um filho...

– O Márcio é meu filho!

– Ele não é seu filho e você sabe muito bem disso!

Abri a porta rapidamente, eu não podia ouvir mais... As duas assustaram-se, não souberam como reagir assim como eu aos meus 13 anos.

– Meu filho, eu posso explicar!

– Que história é essa? - perguntei transtornado.

– Adeus, Martha... boa sorte, garoto... – murmurou Lúcia ao cruzar comigo na entrada.

– O que essa mulher está dizendo...

– Fica calmo... – disse a senhora já com lágrimas nos olhos.

– Como vou ficar calmo? Como eu posso ficar calmo? Me explica essa história agora, porque eu não posso esperar mais... eu... eu...

– Meu filho, eu quero dizer que eu e seu pai te amamos muito...

– Chega dessa conversa fiada e esses sentimentalismos, não é hora disso! – gritei, gesticulando e ela chorou ainda mais. – Olha, eu não sou burro e ouvi muito bem o que ela disse... seja sincera uma só vez na vida! - esbravejei. – Isso é verdade, eu não sou teu filho?

– Márcio...

– Fala!

– Meu filho... eu...

– Fala logo!

– Não! Não! Não é... - respondeu ela aos gritos, enterrando o rosto nas mãos e desabando em lágrimas, desesperadamente. Eu teria pena dela se não tivesse tanta raiva.

Ficamos em silêncio por um breve momento, chorando. Eu não sabia o que dizer, não sabia o que pensar. Por segundos toda a minha vida passou diante de meus olhos, todos os momentos que vivi com meus pais, diversas situações... aniversários... festas... tudo uma grande...

– Mentira! Tudo uma grande mentira é o que é a minha vida! – esbravejei a plenos pulmões.

– Meu filho... apenas este detalhe, este fato... o resto, tudo é verdadeiro... nossos sentimentos, nosso amor...

– Cale a boca, sua vadia! - gritei dando um soco na mesa. – Vamos por tudo em ordem agora, somos dois adultos conversando... – disse tentando me recompor. Aquela mulher que eu jurava conhecer parecia que ia morrer de tanto sofrimento, mas eu já não me importava mais. – Para começo de conversa, não me chame de filho, afinal, eu nunca fui...

– Para! Para com isso, por favor, eu estou sofrendo demais!

– Está vendo é esse o problema! Nunca foi por mim, nem pelo Cléber, nem por aquela cadela que me vendeu... foi apenas por você. Tudo para realizar esse desejo de ser mãe... Dane-se o enjeitado e todo o mundo!

– Não foi assim... – balbuciou.

– Mas é claro que foi! Mas olhe, vocês estão de parabéns... – disse batendo palmas ironicamente – me enganaram direitinho... Eu sempre estranhei o fato de não haver uma foto sequer de sua gravidez, de não me parecer fisicamente com nenhum dos dois, de não ter o mesmo sangue... mas nunca... nunca pensei nisso...

– Não era para ser assim, meu filho! – tentou argumentar vindo em minha direção.

– Não me chame de filho! – gritei segurando fortemente em seus pulsos e impulsionando-a de volta. – Quantos sabiam? Mas que pergunta idiota, todos sabiam...

– Não, Márcio... apenas alguns da família...

­– Para com isso, cara! Você é burra? Um segredo bem guardado está apenas com você. Todos sabiam, menos o idiota aqui. Agora entendo os olhares, o jeito estranho que as pessoas falavam comigo... Merda! Merda! Deviam dizer: “Olhem só, lá vai o enjeitadinho...”

– Meu filho, fique calmo, nós te amamos... isso é só... é só uma fase... – tentava me persuadir aquela velha senhora de olhos vermelhos de tanto chorar.

– Para Martha, que você só se complica... – retruquei, limpando meu nariz com as costas da mão. Virei-me e segui para a saída.

– Não me chame assim... – pediu aos prantos enquanto eu abria a porta.

– Esse não é o seu nome? É assim que eu vou te chamar agora... – respondi enquanto caminhava pelo corredor. A velha caminhava atrás.

– Espere aí! Aonde você vai? – perguntou ao apressar o passo para me acompanhar.

– Sei lá... pra qualquer lugar longe da minha vida. Vou esfriar a cabeça...

– Espera meu filho, você está muito nervoso, não faça uma besteira...

– Eu não sou imbecil o suficiente...

– Espere! Vamos conversar!

– Eu não tenho mais nada para conversar com você... – respondi enquanto a porta do elevador se fechava.

Fiquei dois dias fora de casa. O suficiente para encontrar este apartamento amplo, arejado e realmente muito bom neste edifício cinza como a minha vida. E o aluguel nem é tão caro, dá para pagar perfeitamente bem com o meu trabalho.

Lembram o que eu falei sobre os cafés? Há sempre um interesse por trás de tudo, sejam com os cafés, com a TV, ou com as pessoas. Há sempre uma outra intenção, um outro motivo. Desconfie sempre. O mundo está se tornando uma caixinha insuportável cheia de gente cada vez mais individualista e egocêntrica. Nem mesmo o filho da mãe do Félix – um gato preto de olhos tão amarelos quanto misteriosos – está aqui porque me ama, mas sim por conveniência, porque há comida, um lugar quentinho para dormir e um humano para lhe fazer carinho de vez em quando. Mas pelo menos ele não reclama dos meus cigarros.

Aliás, gosto de cigarros...

15 de novembro de 2013

[502] Desabafo




Dez a quinze minutos para organizar a turma e começar a aula. Quando não mais para controlar o uso dos aparelhos eletrônicos espalhados pela sala.
Metalinguagem: silêncio pelo silêncio.
_ Ih! Caralho! – solta um lá no fundo.
Todos riem e a confusão recomeça.
_ Quê?
_ Foi mal, professora. Tô guardando já.
_ Desliga.
_ Já disse que tô acabando.
_ DES – LI – GA...
Silêncio.
A hora da verdade. Quem fez e quem não fez a atividade... Alguns, poucos, já se encontram com todo material em cima da mesa e o dever pronto para autocorreção. Uma grande maioria ainda nem pegou nada, isso se estiverem com eles ali na mochila ou no armário.
_ Vou passar pra ver.
_ Posso beber água?
_ Eu pedi primeiro.
_ Não, esperem acabar a aula. Vocês acabaram de chegar do intervalo!
Começam as desculpas... “Não fiz, tá na semana de testes e não tá dando tempo de fazer dever não.”, “Esqueci o livro na casa do meu pai e eu tava na casa da minha mãe.”, “Ah, copiei a página errada.”, “Só você dá dever todo dia!”. E por aí vai.
Desisto.
_ Ok. Dessa vez passa, mas vão copiar as respostas na autocorreção. Aqueles que não fizeram e os que não trouxeram o material.
_ Posso sentar com ela pra acompanhar?
_ Não. Vou colocar as respostas no quadro, não disse? - Já se sabe que muitas vezes não se traz ou se diz que não se traz o material para poder sentar com o amigo. - Quem teve dúvida me diz que eu explico de novo, tá?
_ Não entendi nada desse texto.
_ Te ajudo.
_ Vou ao banheiro.
_ Espera, se eu deixar você, tenho de deixar todo mundo.
_ Porra, mas eu preciso.
_ Quê?
_ Desculpa.
Enquanto isso, um na carteira da fileira da direita dorme. O outro, bem no meio da sala, vira o corpo e fica de costas para mim e, em altos papos com os colegas, gargalha e pega o celular. Um grupinho do fundo, aos risos, comenta sobre o que nem quero saber naquele momento...
Irritação.
Metalinguagem novamente: silêncio pelo silêncio.
Todos percebem e ficam quietos.
Toca o sinal...
_ Já acabou a aula...
_ Eu sei.
Saio com um sentimento de dever não cumprido. Saem todos atrás de mim, sem respeitar o inspetor que se encontra na porta, aguardando a chegada do novo professor.
Dirigindo-me à sala onde daria a próxima aula, encontro vários alunos no corredor.
Dez, quinze minutos para organizar...
Dessa vez a missão foi interrompida por uma confusão entre alguns alunos que brigavam por algo que não sei bem o quê.
Interfiro. Tento acalmá-los, mas a voz dos alunos está mais alta do que a minha. Tento a metalinguagem. Nada. Falo mais alto:
_ METALINGUAGEM... – alguns completam em uníssono: “O SILÊNCIO PELO SILÊNCIO.”, e, aos poucos, as coisas vão se acertando.
É dia de dar a nota dos trabalhos. Os alunos que não apresentaram poderiam trazer em outro dia, valendo metade dos pontos.  Um encrenca. Desrespeitou o prazo, faz uma malcriação infantil. Relevo. Diz que faria e me mandaria por e-mail.


_ Tudo bem. Mas vai valer a metade dos pontos em respeito aos amigos que cumpriram os prazos.
De forma agressiva, começou a criar confusão. Chegou a afirmar que mandaria a mãe enviar o trabalho para coordenação e que eu seria OBRIGADA (com tal intensidade que me tirou do sério) a dar a nota, senão eu que me demitisse.
Respirei fundo. Uma aluna se pronunciou:
_ Não estou ouvindo isso...
_ Está sim, disse, mas vamos resolver esse problema depois.
O aluno não parou e, fazendo com que seus colegas entrassem no jogo, continuou com a ameaça.
Peço que se cale. A turma já se desorganizara e ficara dividida, uns contra e outros a favor do coitado.
Falo firme, exijo silêncio, dessa vez sem permitir interrupções. Reafirmei a combinação já estabelecida.
Bate o sinal. Não precisam me avisar que a aula acabou e que já está na hora. Quem sai sem dizer nada sou eu.
No coração, um vazio. Um sentimento de frustração e impotência diante de tamanha falta de respeito e de educação.


Professor... Quem é o professor? Há um tempo eu saberia responder. Hoje... Hoje, não sei não...

8 de novembro de 2013

[403] Episódio 13: Assim é a vida!

Lá se foram muitos dias em que Mirella havia se enterrado junto ao seu passado.

Seu mundinho passara a convergir para seu apartamento onde as paredes desbotavam em cores pálidas condizentes com suas emoções. Precisava repensar aquelas paredes agora que teria mais tempo para estar com elas, talvez seria uma boa ideia repintá-las.

Sim, tempo. 

Mirella estava desempregada!

Foi um choque quando, ao voltar a trabalhar, encontrou sobre sua mesa a carta de demissão onde pode ler friamente a notícia de que seus trabalhos não seriam mais necessários à empresa.

Perdera o pai e o emprego em uma tacada só.

Precisaria de tempo.

E agora uma nova carta: do síndico, cobrando o aluguel atrasado.

Tantos acontecimentos em torno de seu prédio e em sua vida!

Sua vizinha, a menina meio doidinha, que sumira por um tempo estava presa (Que delito essa pequena deveria ter cometido?) O apartamento seria ocupado por um novo morador.

A mulher que conhecera no metrô alugara um apartamento no prédio. Menos mal, teria com quem conversar. Íris parecia ser uma pessoa bem legal. 

Soube da confusão que envolveu os meninos do terceiro andar. Coisas de gente preconceituosa.

D. Lêda , pelo que ouviu dizer, bateu a cabeça e está hospitalizada. E Seu Célio então, esse, acho que mumificou!

O cara esquisitão que gosta de fuxicar lixo enclausurou-se no apartamento. Parece que anda deprimido.

Está tudo sombrio naquele aglomerado de blocos de concreto... Mirella se arrepiou: imaginou a cena de um cemitério com seus jazigos empilhados uns sobre os outros.

Estremeceu o corpo e sacudiu seus pensamentos. 

Que mais poderia lhe acontecer? Ah, claro: a tal carta!

Nada incomodava mais Mirella do que ser cobrada por suas responsabilidades!

Nunca fora com a cara do síndico e agora menos ainda, pois nem bem atrasara seu aluguel e o mesmo já a constrangera com uma cobrança no mural do prédio. Poderia processá-lo por assédio moral mas do jeito que sua vida andava em revés seria melhor não mexer em vespeiro.
                                      
Abriu, mais uma vez, a página dos classificados. 

Seu futuro a esperava no labirinto de letras cheias de significados que não lhe traziam nenhum significante. 

De repente, nas páginas em preto e branco, um anúncio colorido de qualquer coisa chamou-lhe a atenção, não pelo produto em si mas pelo que dizia:





Foi então que Mirella sentiu uma brisa mansa dentro de seu peito, fechou os olhos com suavidade e uma lágrima lhe escapou.

Assim é a vida, pensou.

4 de novembro de 2013

[201] Sexto Episódio: Religação

 
 ambiente escuro do quarto feito de oratório era adentrado pela luz amarelada dos postes que, mutilando-se no desenho miúdo da cortina de renda, projetava nas paredes e no corpo ajoelhado um intercalar disforme de luz e escuridão, a batalha cósmica entre algum tipo insondável de Sumo Bem e seu oposto. Hermínia me vinha à mente agora não mais em forma de desejo, mas como um arrependimento. Em tom solene, minha voz pronunciava firmemente o Ato de Contrição, meu espírito curvava-se para receber a remissão dos meus pecados:

– Senhor Jesus Cristo,
Deus e homem verdadeiro,
Criador e Redentor meu,
por serdes Vós Quem sois...

Há duas quadras do edifício, um corpo ensanguentado grunhia entre o líquido escuro que vazava dos sacos de lixo. Do lado da cabeça de cabelos ralos e dourados, uma bolsa sem carteira e celular. Antipenúltima... penúltima... última respiração.

– ...sumamente bom
e digno de ser amado
sobre todas as coisas,
e porque Vos amo e estimo...

Ao leste, o homem abria o zíper de sua calça enquanto uma mulher de meia idade se abaixava com algum esforço à sua frente, tentando movimentar-se dentro de um vestido preto, caricaturalmente apertado, que lhe estrangulava.

– ...pesa-me, Senhor,
de todo o meu coração,
de Vos ter ofendido;
pesa-me também
por perdido o céu
e merecido o inferno...

Em uma das ruelas em que ligam à avenida central, um bastão improvisado com madeira de móveis achada no lixo movia-se rapidamente e acertava a cabeça de um morador de rua, que dormia enrolado em pedaços de papelão. Dois homens corpulentos corriam com um sorriso de satisfação em seus rostos.

– ...e proponho firmemente,
ajudado com o auxílio
da vossa divina graça,
emendar-me
e nunca mais vos tornar a ofender...

A guria abordava um carro parado no sinal perto da praça de São Marcos, brilhava como uma estrela triste no meio da madrugada da Cidade em seu vestido de paetê que lhe deixava o corpo bonito, com suas coxas compridas à mostra. A guria tinha outra guria para cuidar. Entrava nos carros a trabalho, cobrava ‘vinte pratas’.
                       
– ...e espero alcançar o perdão
das minhas culpas,
pela vossa infinita misericórdia.
Amém.




Em um ou outro canto da Cidade, todos se sentiam como vítimas potenciais de uma dinâmica humana que lhes fugira do domínio e ia se personificando cada vez mais claramente no grande e complexo corpo de cimento, de metal, de rodas de borracha e de gente sem rosto. As lutas particulares são as mais diversas e aparecem na forma de algum tipo de violência. Contudo, em milhares daqueles cubículos dos prédios residenciais era travada uma luta menos aparente contra a solidão. Balela para alguns, eu entendo, mas algo cujo resultado para outros é capaz de os definir como santos ou condenados. Por quanto tempo consegue-se ficar puro? O mal é como um veneno que vai pela articulação do cotidiano; uma vez que já foi absorvido e faz parte de seu funcionamento, não é visto mais como mal, é apenas coisa da vida.

2 de novembro de 2013

[502] Não há dia para sentir saudade



Hoje, ao acordar, procurei um florista. Escolhi as flores do campo mais lindas e fui ao mar. Precisava abraçar minhas saudades. Conversar com meu Deus para acolhê-las e acalmar meu coração. Imagino que esteja sentindo o mesmo.

Não gosto desses rótulos de dias disso ou daquilo, principalmente de quando mexem comigo e me fazem tristes como agora. Mas fui criada assim: dia de mãe, pai, avó, da criança... dias e dias que me traziam ou me levavam presentes... e o dia dos mortos.

Finados! Este, quando criança, era um horror! Minha vó Eloah não me deixava ouvir música alta, me fazia ir ao cemitério levar flores pra gente que eu nem conheci... Acabei absorvendo essa cultura ingrata, que hoje não valorizo, mas tenho em ranço, na alma encrustada.



E aqui estou eu, morrendo de vontade de chorar de saudade. Contra tudo que penso, porque penso que a morte é renascer. Mas esse renascer, agora, dói... Mesmo tendo crença na reencarnação, sabendo que quem amo está vivendo ainda, fico, de maneira bem egoísta, querendo que eles estivessem comigo ainda aqui.

Dia da saudade! Ora! Que dia que nada... Não há dia para a saudade... Sentimos saudades do que foi e dos que foram todo dia... Porém o que fazemos é embuti-la na rotina, guardando-a em um canto escuro do coração para aliviar aquele sentimentozinho de dor que, mesmo não querendo, fica evidente no instante em que ela, sobrevivente ainda, rompe as barreiras musculares e cerebrais e aparece no corre-corre da vida da gente.

Mesmo sabendo disso, o meu lado racional nessa hora se coloca em segundo plano e deixa emergir uma emoção quase doentia de dentro da alma... será que me entende?

Sinto que é necessária a saudade para que o esquecimento se vá. Este sim é perverso. Só se deve esquecer o que nos trouxe (ou traz) mágoas e ressentimentos, fazendo com que o perdoar seja uma dádiva (e que difícil isso, viu!).




Que neste dia possamos, Paolo, meu pai querido, viver intensamente nossas saudades em alegria extrema de querer bem!