28 de janeiro de 2014

[205] Episódio 3: O gato falante


Corri o olhar pela sala, a tela do monitor iluminava precariamente o cômodo. Meu pai tem razão, isso aqui está um lixo. Preciso tirar um tempo para desencaixotar minhas revistas, jornais e CDs. Por hora, acho que levarei todas as caixas para um dos quartos, e assim deixo a sala livre.

Dei mais uma tragada no bagulho, eu precisava relaxar. Maria Joana era criativa, extrovertida e tinha o poder quase sobrenatural de me relaxar – talvez tanto quanto Cátia. Mas algumas coisas eu só conseguia fazer com ela: veja só a logo da clínica de fisioterapia no monitor. Ficou excelente!

Gargalhei e dei outra tragada. Me apresentaram a Joana no ensino médio, alguns amigos já a conheciam há mais tempo, e de lá para cá não nos separamos mais. Aliás, eu acho que a Cátia, na verdade, deve ter me largado a primeira vez por causa dela.

Puta que pariu! Félix saltou para uma das caixas e caiu todo esparramado lá dentro! Gargalhei e só traguei outra vez quando pude me recuperar do riso. Ergui o cigarro à frente do rosto. Estava quase acabando, feito meu estoque. Eu precisava comprar mais com o Bolinha.

– Gato idiota! – disse ainda rindo. Félix ergueu a cabeça de dentro da caixa e me encarou.

– Vai se foder, seu babaca... – retrucou. Chorei de tanto rir.

– Deu para falar agora, seu viado?

– Quando um babaca se entope de maconha, até gato fala... – disse ele, sentando-se. Lambeu uma pata e passou na orelha.

– E o que você tem a ver com isso?

– Você me prometeu, seu canalha! – retrucou me encarando novamente. Senti um golpe no rosto, mas não me virei.

– Você fala feito uma mocinha. Parece a Cátia... – disse para fazer-lhe implicância, gargalhando.

– Para com isso e olha para mim! – esbravejou Félix saltando da caixa e se aproximando. Senti outro golpe no rosto. – Você comprou mais jornais? Está parecendo um mendigo no meio disso tudo... – acrescentou em tom grave. Outro golpe: um tapa seco, estalado.

– Ih, olha só Félix, falando em Cátia... – disse ainda sorrindo, virando-me na direção do golpe.

– Por que está fazendo isso? Por quê? – perguntou Cátia com os olhos marejados. Eu não conseguia parar de rir, apesar de achar aquilo muito triste. Por que Cátia estava chorando?

– Que saudades, meu bem... Demorou tanto a vir, pensei que tinha me abandonado outra vez... – disse tentando conter o sorriso que se desfazia com dificuldade. Félix não disse mais nada, virou-nos as costas e pulou para uma das caixas, deitando confortavelmente.

– Márcio isso precisa parar! Você vai acabar se matando! – sussurrou tristemente abraçando minha cabeça e colando ao seu peito. Minhas lágrimas vieram e não pude segurar.

– Meu pai esteve aqui... disse que minha mãe sente minha falta, chora todos os dias... – balbuciei fungando.

– E você aí se matando de fumar maconha... – retrucou acariciando meus cabelos.

– Pediu para eu voltar para casa...

– E você vai voltar?

– Minha casa agora é aqui, Cátia. – respondi ainda fungando.

– Isso está longe de ser chamado de casa. – disse levantando. Caminhou com dificuldade entre as caixas com minhas coleções de revistas e jornais. – Você tem comida?

– Está com fome? – perguntei levantando-me e sorrindo, a vista ainda embaçada pelas lágrimas.

– Não, estou apenas preocupada com você...  – respondeu da cozinha, ao bater a porta do refrigerador. Caminhei a seu encontro, ela retornava fechando o zíper da bolsa. – Eu vou sair para comprar alguma coisa para almoçarmos.

– Mas eu comprei uma lasanha esses dias... – comentei quando ela cruzou o caminho comigo.

– Eu vou ao mercado, meu bem... fique aqui e jogue isso fora, por favor... – disse ignorando meu comentário sobre a lasanha e segurando minha mão com o resto do bagulho com autoridade. Me senti um garotinho. Acompanhei à distância ela se dirigir até a porta, Cátia deu uma meia parada, suspirou e veio ao meu encontro. – Porque você faz isso comigo, seu cachorro? – reclamou batendo em meu peito e me beijando em seguida.

– Ora, faço o quê? – perguntei, confuso, enquanto a beijava.

– Você não me ama. Não ama a ninguém, apenas a si mesmo... – sussurrou, enquanto tirava minha camisa, passando as mãos em meu peito logo após.

– Eu te amo... – balbuciei, enquanto Cátia retirava a camiseta de suplex com habilidade, deixando os seios nus.

– Mentiroso! – esbravejou me desferindo um tapa. Meu rosto ardeu e os olhos encheram-se de lágrimas novamente. 

– Você enlouqueceu? – esbravejei segurando em seus punhos com vigor. Seus olhos também estavam marejados.

– O que foi? Vai me bater agora, seu covarde? – debochou com aqueles olhos brilhantes e desafiadores. Ela sabia que eu não era capaz de lhe fazer qualquer mal. Eu afrouxei as mãos e ela avançou sobre mim novamente, beijando-me com avidez.

– Você sabe que eu não sou capaz disso, não é mesmo? – respondi entre seus beijos.

– Patife... você ama mais o bagulho do que a mim... – reclamou enquanto desabotoava minha calça.

– Isso é mentira! – murmurei, mas ela parecia não me ouvir.

– Eu quero você por inteiro, não quero dividi-lo com ninguém, nem mesmo com um vício... – acrescentou, baixando sua calça com dificuldade. Abraçou-me em seguida, colando os diminutos seios em meu peito e beijei-a com sofreguidão.

– Você fala demais... – observei segurando fortemente em sua cintura e deitando-a entre as caixas.

– Seu covarde! – vociferou socando meu ombro esquerdo, abrindo as pernas para que eu me encaixasse no meio delas.

– Cala a boca! – gritei esbofeteando-a, algumas lágrimas rolaram rosto abaixo, mas ela não parecia insatisfeita. Afastei a calcinha com os dedos e penetrei-a fortemente, batendo o púbis com violência em seus quadris. Cátia gemia com prazer, mordendo o lábio inferior e me conduzindo para si, segurando em minha bunda. A mulata franziu o cenho, seus suspiros tornaram-se agudíssimos, um tom soprano melancólico que se perdia no orgasmo.

Continuei meus movimentos com mais vigor ainda, o suor escorria-me pela testa alcançando e queimando as vistas. Não consegui gozar, por mais que tentasse e por maior que fosse a paciência de Cátia. Deitei ofegante e exausto ao seu lado, ela sentou abraçando as pernas e me encarou.

– Fuma mais maconha, seu babaca... – sussurrou tentando controlar a respiração.

– Eu também te amo... – murmurei com deboche.

– Se eu não te amasse, não estaria aqui, não acha? – disse baixando o tronco para beijar-me a boca.

– Não sei. Talvez esteja impressionada com a minha cultura... – retruquei, sorrindo. Ela não respondeu. Levantou, espreguiçou-se e catou as roupas no chão para se vestir. – Onde você vai?

– Vou comprar alguma coisa para a gente almoçar... – respondeu dando uma última reboladinha para por a calça justa.

– Está com fome?

– Estou. – respondeu colocando a camiseta e arrumando os cabelos. Calçou as sapatilhas, foi ao banheiro e lavou o rosto. Sentei-me e fiquei observando o membro perder massa, tombando de lado. Cátia voltou e então me levantei, apoiando um joelho no chão.

– Não demora muito... – disse em tom de súplica. Ela pegou a bolsa e se aproximou sorrindo.

– Eu já volto... – tranquilizou-me e beijou minha boca. Teve um sobressalto quando lhe dei um tapa no traseiro, a caminho da saída.

– Eu te amo. – disse quando ela abriu a porta. Ela sorriu novamente, parada ao umbral.

– Também te amo... – respondeu e saiu.

Suspirei. Talvez ela tivesse razão, eu devia amar mais a maconha do que a ela, e mais do que a mim mesmo, isso precisava parar. Suspirei novamente e segui até a cozinha, estava morrendo de sede. Abri a geladeira e corri o olhar para buscar a garrafa d’água, mas a ausência do meu pacotinho de maconha chamou-me a atenção.
 Cátia, sua filha da puta!murmurei entre os dentes. A piranhazinha havia levado o resto da maconha que eu tinha em sua bolsa! Suspirei e fechei o refrigerador, ouvi um miado fininho e virei-me em sua direção. Félix estava sentando junto à porta da cozinha, fitando-me com aqueles olhos amarelos e curiosos. Miou outra vez. – Gato idiota...

14 de janeiro de 2014

[201] Sétimo Episódio: O que não tem conserto


Não nos foi concedido o domínio sobre nós, disto ninguém há de discordar. Quanto a mim, o que mais me aflige nessa vida é a distância sempre crescente entre intenção e ato, um descompasso que, ao ritmado comando do tempo, nos transforma naquilo que outrora detestávamos. O devir é sempre uma experiência pior do que se imaginara.
                Uma atmosfera de tensão rondava-me pelas últimas semanas: o rosto de D. Wilma parecia estar mais fechado do que de costume, mas também transmitir um abatimento profundo e sincero; um quê de censura saltava dos olhares dos meus paroquianos e grudava-se em minha fronte como a lanterna do sentinela que flagra um pretenso fugitivo. Senti-me injustiçado: se alguma vez desgarrei-me – e consigo mesmo admiti-lo – já me muni do firme propósito de emendar-me e neste caminho trilhei desde então. Mas as pessoas querem perfeição, enfileiram-se nos bancos da matriz como consumidores que pagam pela personificação da sabedoria lhes falando do púlpito, dando-lhes Deus transubstanciado em pão e ouvindo suas mazelas, aconselhando-os. Ninguém procurava confissão há dias, era o prelúdio de que algo estava acontecendo.
                Ao fim de uma Missa de terça-feira, meus dois coroinhas saíram precipitada e coordenadamente da sacristia obedecendo a um comando da cabeça demasiado grande de Wilma. Trazia na mão um grande envelope.
                - Não pense que tenho algum prazer em fazer isso, Frei. Se todos fossem compreensivos como eu, talvez não houvesse necessidade de se chegar a este extremo – mas em seus olhos, dançavam fagulhas de satisfação a despeito de seu discurso.
                Dispôs então vários itens retirados do envelope sobre a imponente mesa de mogno, que parecia especialmente lustrada para aquela ocasião. Papa e Bispo observavam, de suas molduras douradas, nossos movimentos. Cristo jazia na cruz, como sempre, entediado: certamente não lhe entretinham eventos tão banais.
                O inventário dos itens dispostos: uma carta de Dom Juarez, superior geral de minha Ordem de origem, atualmente alocado em Roma, que me concedera permissão para experimentar a vida diocesana para sanar minhas dúvidas vocacionais, provavelmente ordenava-me o regresso; uma carta do Conselho Paroquial, com a assinatura de cada uma das ilustres pessoas que o compunham e gozavam de prestígio diferenciado naquela comunidade; algo semelhante a um abaixo-assinado, que parecera-me ridículo; um envelope alvo, bem lacrado, com a palavra DOSSIÊ bem destacada em vermelho.
                Abri-o. Algumas páginas escritas a mão, com várias letras distintas, descreviam minha vida noturna – mais exagerada, obviamente, do que ela realmente fora enquanto existiu. Mas a parte maior do entretenimento eram as fotos, em quantidade econômica de pixels. Eu, com um cigarro na boca andando em alguma ruela. Eu, com um cigarro na boca à janela do meu apartamento. Eu, com uma taça de vinho em uma mesa de bar. Hermínia. Senti vontade de chorar e meu coração estava humilhado, teria pedido piedade se pudesse esperar algum resultado de uma atitude deste tipo. Na carta de meu superior, estava destacado o seguinte trecho da Regra de Santo Agostinho:

                “Assim também, o que fixa o olhar numa mulher e se deleita em ser olhado por ela não deve supor que não é visto por ninguém quando faz isto; certamente que é visto e por aqueles que ele nem imagina que possam ver. Porém, mesmo que permaneça oculto e não seja visto por ninguém, que dirá d’Aquele que conhece o coração de cada pessoa e a quem nada se pode ocultar? Ou se pode crer que não vê porque o faz com tanto maior paciência quanto maior é sua sabedoria? Tema, pois o homem consagrado desagradar Aquele , para que não queira agradar pecaminosamente uma mulher. E para que não deseje olhar com malícia uma mulher, pense que o Senhor tudo vê. Pois é por isto que se nos recomenda o temor, segundo está escrito: 'Abominável é diante do Senhor aquele que fixa o olhar'".

                - Devo ainda alguma obrigação com esta paróquia, D. Wilma? Imagino que esteja vindo alguém para substituir-me. Se não sou mais necessário, gostaria de ir pra casa e ler com calma todos estes documentos e ponderar sobre o que fazer neste futuro breve.
                Ela assentiu com os olhos marejados, apertou forte uma das minhas mãos e deixou dentro um pingente de Nossa Senhora das Dores, sua devoção. Depois virou-se bruscamente e imagino ter-se deliciado numa risada silenciosa e comprida. Deixei a clesma sobre a mesa, junto com a medalha que me enojava, andei calmamente o corredor central da igreja e, já à porta para sair, encarei tudo. As imagens pareciam desafiar-me e enfrentei-as: virei-me, bastante ereto e saí simplesmente, sem me ajoelhar, sem pedir que algo dali me acompanhasse pela rua. Tentaria ser outra pessoa.